Os Romeiros voltaram!
Eles aí estão de novo, calcorreando as estradas e os caminhos mais antigos da nossa Ilha de São Miguel, mantendo viva uma tradição que conta já mais de 500 anos! E que saudades tínhamos todos de ver esses grupos de homens penitentes, de xaile pelas costas e lenço na cabeça, quando a chuva ou o frio apertam, passando as contas do terço enquanto vão cantando a Avé Maria, no tom arrastado e comovente, como só eles sabem fazer!
É que as Romarias foram suspensas com a pandemia e mantiveram-se assim durante os dois anos seguintes. Faziam-nos por isso falta, aos nossos olhos e sobretudo às nossas almas, que tanto beneficiam, sem sabermos como, das orações e dos sacrifícios escondidos dos Romeiros.
Há quem pelo caminho vá pedindo rezas ao Procurador de Almas de cada rancho e fique obrigado a retribuir rezando por eles, multiplicado pelo respectivo número, as Avé Marias que encomendou. O peticionário começa por perguntar quantos são os Irmãos do rancho e a resposta inclui logo, para além dos peregrinos mais três, Jesus, Maria e José, que cada grupo leva em sua companhia.
À frente de cada Rancho de Romeiros caminha um deles levando o Crucifixo, normalmente o mais novo, por vezes ainda criança. À noite, quando o grupo se dispersa, à saída da igreja da freguesia onde vão ser acolhidos em casas particulares ou nos salões paroquiais, quando faltam voluntários para tal acolhimento ou o Rancho é muito grande e excede as possibilidades do lugar, todos os Romeiros beijam a Cruz e antigamente era costume beijar também a mão do Mestre, que é como um pai para todos ao longo dos dias da Romaria.
Para alguns a Romaria parece uma ocasião de distração das tarefas habituais ou até um pretexto para uns dias de férias extras…Talvez para isso tenha contribuído a praxe introduzida tardiamente de não incluir os dias de dispensa de serviço para a Romaria como tempo a descontar nas férias, isso relativamente aos funcionários públicos. Mas ainda assim, só quem nem imagina o que é andar uma semana inteira, quer chova quer faça sol, pelas vias que conduzem a visitar todas as “Casas de Nossa Senhora”, rezando em silêncio ou cantando, quando se atravessam os povoados, pode assim desvalorizar a penitência dos Romeiros.
A preparação da Romaria começa com alguma antecedência, preenchendo serões de inverno, para rever os cânticos e acertar os pormenores da longa viagem. Finalmente, no dia marcado, ainda de madrugada, soa a hora da partida, depois da Missa, com as Famílias, na Igreja Paroquial. Em princípio só se tornarão a ver na ocasião para tal prevista e no dia do regresso a casa, novamente com Missa na mesma Igreja. O afastamento, por mais que custe, deve ser total, para deixar cada Romeiro livre, a sós consigo próprio, com os Irmãos da Romaria e com Deus, através da Mãe de Jesus Cristo, a Virgem Maria, Nossa Senhora das mais variadas invocações.
Este ano a primeira semana das Romarias teve condições atmosféricas particularmente duras. Choveu imenso, dias a fio, molhando os xailes, por mais impermeabilizados que se tente fazê-los, e a roupa toda até chegar ao pêlo… Dizem os mais experientes, que ainda assim isso é melhor do que ter de caminhar debaixo de sol ardente, com as sapatilhas a queimar os pés e o corpo todo a destilar suor debaixo do xaile e do peso da saca com a comida, a roupa e os demais pertences. Em ambos os casos, só com grande vontade e espírito de sacrifício se consegue aguentar a caminhada, remindo, em união com Cristo, os próprios pecados e os pecados do Mundo.
Há um forte sentimento de solidariedade entre os membros de um Rancho de Romeiros, que se sentem e se tratam por Irmãos, ao longo de toda a semana que dura a Romaria e até fora já dela. Tal solidariedade alarga-se, com verdadeira adesão aos princípios cristãos genuínos, a toda a Igreja, tão carecida de compreensão e de ajuda, e afinal a toda a Humanidade.
Por isso as Romarias, nascidas e praticadas na Ilha de São Miguel, ultrapassando no tempo as proibições autoritárias e movidas por jacobinismo mal disfarçado, mantêm-se vivas e cheias de força, envolvendo números cada vez mais significativos de pessoas, que são em cada ano da casa dos milhares. Digo pessoas, e não homens, porque nelas afinal também de alguma forma participam, desde sempre, as mulheres e as crianças. Quanto a elas até se registam, nos últimos tempos, Ranchos de Romeiras, com um percurso mais reduzido e adaptado, mas com igual fervor religioso, contando-se já por centenas as que acorrem a tal prática de penitência quaresmal.
Por outro lado, os nossos emigrantes, longe geograficamente da Ilha mas não longe dela pelo coração, juntam-se aos Ranchos de Romeiros das suas freguesias ou vêm já em ranchos completos, da América ou do Canadá. Lá longe também se vão fazendo Romarias, em Toronto ou em Fall River, na manhã de Sexta-feira Santa, correndo as igrejas da cidade erguidas pela nossa Comunidade através das gerações.
E, sem surpresa, também no nosso Arquipélago, as Romarias vão surgindo pelas diferentes ilhas, mais curtas, naturalmente, mas nem por isso menos sentidas, em Santa Maria, na Graciosa e ainda na Terceira, pelo menos é o que me têm dito e registo com muito gosto.
Benditos sejam sempre os Romeiros de São Miguel e dos Açores!
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)