No centenário de Natália Correia

Hesitei se havia de escrever o nome completo da famosa Poetisa ou apenas o seu nome próprio - Natália - como acontece com Antero e outros génios, que gozam de tal atributo. E a verdade é que se vai fazendo a prova do tempo, que passa sem que a memória dela se dilua e caia no esquecimento, como acontece com tantos outros escritores, outrora lidos e comentados, hoje postos na prateleira, não lidos nem comentados, simplesmente ignorados.

Para nós, Açorianos, ela será sempre a autora dos versos do nosso Hino, identificativo do Povo Açoriano! Dei-lhe este encargo à confiança, por saber da sua devoção aos Açores e do seu compromisso vital com o processo reivindicativo da construção da nossa Autonomia Política, fundamentada nos ideais de Liberdade, de Justiça e de Emancipação, inspiradores da Revolução do 25 de Abril.

Vitorino Nemésio fala disso num dos poemas mais fortes do seu livro “Sapateia Açoriana”, significativamente intitulado: “Corsários à vista!” Vale a pena tê-lo presente, porque os ataques dos “corsários” sobre as nossas Ilhas, o seu Povo e as suas justas aspirações não são, infelizmente, coisas do passado, mas continuam a acontecer e com especial vigor, sempre que nos pensam mais distraídos… Tenho tentado lê-lo aos meus alunos e não consigo nunca fazê-lo, porque me comovo e a voz se me embarga e vêm-me lágrimas aos olhos, quando o Poeta evoca, simbolicamente, cada uma das coisas que são nossas e outros pretendem apropriar-se delas. Mas menciono sempre os versos iniciais e identifico as duas amigas a que o mesmo se reporta, uma das quais é precisamente Natália Correia, de quem elogia “as suas propriedades exoftálmicas”, comentando, entre parênteses, o que tenho já repetido noutras ocasiões: “arregalar os olhos é um privilégio oportuno”!

Desafiada a fazer um poema que “coubesse” na música já bem conhecida do Hino, composta durante a campanha autonomista do século XIX, Natália Correia não se amedrontou com a tarefa. Enviei-lhe numa “cassete” a dita música, gravada ao piano por Teófilo Frazão, e tempos depois recebi-a de volta com a voz dela, bem timbrada, a cantar os versos que se conhecem. Numa carta manuscrita, que consta do meu Arquivo Pessoal - depositado na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada e aguardando que haja finalmente disponibilidade para fazer o adequado tratamento arquivístico dele, enquanto outros lhe vão passando à frente, talvez por serem mais pequenos ou por outras razões - a Poetisa justifica as escolhas feitas e alude a que os hinos patrióticos contêm sempre a sua dose de glórias e vitórias, o que é um facto indesmentível e também aparece no caso concreto do nosso.

Por sinal, dá-me pena que muita gente não tenha aprendido ainda a cantar o Hino dos Açores, quando as suas estrofes são tão belas e transportam a marca genética de uma Poetisa com garra, que soube tão bem interpretar o fundamental da nossa identidade como Povo. O seu imperativo: “ Para a frente, Açorianos, pela nossa Autonomia!/ Liberdade , Justiça e Razão/ Estão acesas em alto clarão/ Na bandeira que nos guia!” - bem devia ser um vibrante apelo a motivar todos nós, e de forma especial os mais jovens, para a participação cívica na resolução dos problemas de diversa natureza que afectam o interesse público do nosso Arquipélago, feito agora Região Autónoma da República Portuguesa e através dela da União Europeia.

Tudo isso me ocorre a propósito do colóquio promovido pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, da presidência de Pedro Nascimento Cabral, no Centro Cultural Natália Correia, na Fajã de Baixo, terra natal da Poetisa, durante a semana passada, comissariado por Ângela Almeida, a quem me dirigi, meio a sério meio a brincar, como “Grande Sacerdotisa do Culto Nataliano”. Participaram com interessante s comunicações nomes conhecidos do panorama das letras nacionais, vários deles vindos expressamente de Portugal, a convite da organização do colóquio, que aliás bem mereceria a qualificação de Congresso, de tal valor se revelaram os trabalhos apresentados. Foi dito pelo Vereador da Cultura, Sérgio Resendes, que vão todos ser recolhidos em livro, o que manifestamente se impõe e será um excelente serviço prestado à memória da Poetisa e à Cultura Portuguesa.

Fernando Dacosta, o último orador do Colóquio, no seu inconfundível estilo, lembrou que Natália Correia tinha por mim grande ternura. Lembro agora um episódio ocorrido no dia da posse de Mário Soares para o seu segundo mandato como Presidente da República. Ao começo da tarde fomos com o Presidente depor flores junto da estátua de Antero, no Jardim da Estrela. Enquanto se guardava silêncio, soou a voz imperativa de Natália Correia :” Ó João Bosco, diga lá um poema de Antero!” Recusei delicadamente, alegando não estar preparado para tal. Em anterior homenagem de Mário Soares a Antero, junto do seu túmulo, em Ponta Delgada, durante a inesquecível Presidência Aberta, em 1989, Natália Correia saltou para cima do canteiro que faz borda à campa e declamou ali mesmo, lendo-o directamente da pedra em que está gravado, o belo poema de João de Deus: “Aqui jaz pó! Eu não, eu sou quem fui!”

João Bosco Mota Amaral

(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)