Ainda à volta da revisão constitucional

Pelo que vou lendo na Imprensa, a revisão constitucional prossegue a passo de caracol, com a Comissão Eventual para o efeito eleita no Parlamento, e que já vai no segundo Presidente, examinando e discutindo cada um dos preceitos contidos nos vários projectos submetidos à sua apreciação, aparentemente pelo menos sem qualquer pressa, como se fosse uma tarefa não para se fazer mas para se ir fazendo

Nos meus tempos de Deputado à Assembleia da República participei em várias Comissões Eventuais com o mesmo fito e idênticas praxes. Só houve resultados práticos na primeira delas, em 1997, salvo erro, quando os líderes dos dois maiores partidos parlamentares, que detinham a chave da revisão constitucional, por os Deputados eleitos pelo Povo nas listas respectivas somarem os 2/3 requeridos, se reuniram e traçaram os termos da revisão a fazer. Eram eles António Guterres, pelo PS e Marcelo Rebelo de Sousa pelo PSD. Furioso com tal conluio, que punha objectivamente em causa a validade do trabalho sonolento até aí realizado, o Presidente da Comissão Eventual, Vital Moreira, ex-PCP já então reciclado como PS, demitiu-se com estrondo. Mais tarde foi José Sócrates, como líder do PS e Primeiro Ministro quem o foi buscar, preterindo outros pretendentes ao cargo, para cabeça de lista para as eleições europeias, levando Almeida Santos, então Presidente do Partido, a exclamar, aparentemente enlevado perante o anúncio de tal solução: “Um Professor de Coimbra, meu Deus!”

Não participei na Comissão Eventual que preparou a revisão constitucional de 2004, por ser nessa Legislatura o Presidente da Assembleia da República, tendo porém a honra de assinar o diploma final, que procedia, conforme então foi afirmado, à libertação do poder legislativo das Regiões Autónomas, confirmando assim, e com voto unânime do Parlamento no uso dos seus poderes constituintes, a Autonomia Política dos Arquipélagos Portugueses do Atlântico, Açores e Madeira, que ninguém pode já considerar “territórios não autónomos” nos termos e para os efeitos da Carta da Organização das Nações Unidas. Mas logo a seguir coube-me presidir à Comissão Eventual que procedeu à revisão extraordinária da Constituição, alterando apenas um artigo, a fim de permitir a realização de referendo sobre tratados europeus, que afinal nem sequer vieram até agora a acontecer…

Depois disso - e já vão quase 20 anos, em que o Mundo mudou muitíssimo, mas a nossa Constituição tem permanecido intocável - estive em diversas comissões de revisão cujo trabalho foi inconclusivo, por ser óbvia a impossibilidade de se obter a maioria qualificada requerida, com aconteceu com a tentativa feita no mandato de Passos Coelho, que confiou a elaboração do projecto do PSD a um destacado ex-banqueiro conhecido pelas suas opções monárquicas, ou então por se tratar de iniciativas extemporâneas, como a ou as dos Deputados do PSD/Madeira, sufragando orientações da respectiva Assembleia Legislativa Regional.

Tudo isso é agora aqui evocado para dizer que se queremos deveras uma revisão constitucional sobre as matérias referentes ao regime autonómico democrático das nossas Ilhas , então talvez valha a pena pressionar para um entendimento ao mais alto nível entre os dois maiores partidos portugueses, que continuam a ser o PS e o PSD. A esforçada busca de consensos com as demais forças políticas com representação parlamentar nos Parlamentos, regionais e nacional, é muito meritória, mas arrisca-se a servir de cobertura apenas às dificuldades de entendimento sobre a matéria, nas ilhas e no conjunto nacional, entre os dois partidos que , com os seus 80% dos Deputados na Assembleia da República, são presentemente os detentores da maioria de revisão constitucional. Porque já se verificou que há dificuldades de entendimento nesse âmbito, mas ainda assim não parece que se deva desistir, sem um esforço adicional, dos objectivos que afinal são afirmados como comuns ao PS e ao PSD, tanto no plano nacional como em cada uma das Regiões Autónomas.

Será a meu ver a altura apropriada para pôr sobre a mesa a fundamental questão financeira. A Lei das Finanças Regionais necessita uma revisão profunda e as Regiões Autónomas carecem de um saneamento financeiro, em termos análogos ao que foi feito pelo primeiro Governo de António Guterres, sendo Ministro das Finanças Luciano Sousa Franco, que vinha de Presidente do Tribunal de Contas e estava por isso bem a par da iníqua repartição dos recursos nacionais praticada pelo Executivo anterior. Ora, o problema agravou-se nos últimos anos com a extensão das responsabilidades públicas nas áreas da Saúde e da Educação, sem que tivessem sido feitos os ajustamentos necessários. Convém muito que nessa matéria se reforcem, por via constitucional, as garantias da Autonomia Regional, que ficaram reduzidas desde que se remeteu para a LFR o tratamento das relações financeiras entre as Regiões Autónomas e a República, permitindo ao Tribunal Constitucional declarar sem efeito o que em tal matéria se dispunha nos Estatutos Político- Administrativos de cada uma delas, com a correspondente blindagem jurídica face à legislação ordinária.

E por falar em Tribunal Constitucional - instituição hoje mergulhada numa verdadeira crise existencial, que mina o seu prestígio e talvez até esteja pondo em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, por se manterem em funções juízes com os mandatos esgotados - será também a altura de acabar de vez com os esquemas de preenchimento de lugares por escolha dos próprios juízes designados pelo Parlamento, atribuindo ao Presidente da República a livre nomeação do Presidente do Tribunal e às Regiões Autónomas a eleição nos respectivos Parlamentos por maioria qualificada dos dois outros juízes, um por cada uma delas.

João Bosco Mota Amaral

(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)