A grande música na Páscoa em Ponta Delgada
A estadia na nossa Ilha de São Miguel, aproveitando as férias escolares para um período de ensaios mais intenso, da Jovem Orquestra Portuguesa, composta maioritariamente por raparigas, permitiu um interessante convívio com os estudantes de Música do Conservatório e ainda proporcionou a um público mais vasto a oportunidade de dois concertos, com programação escolhida e de qualidade. Fui gentilmente convidado para ambos, mas só consegui ir ao segundo, no Coliseu, na tarde do Domingo de Páscoa e não fiquei desiludido, antes pelo contrário.
A JOP é uma instituição credenciada na formação de futuros profissionais da Música. Vão crescer muito ainda, todos eles e elas, no convívio com os instrumentos que escolheram e no domínio dos mesmos, mas forçoso é reconhecer que estão todos no bom caminho. Acresce que veio como Maestro Assistente o nosso conterrâneo Henrique Constância, que está fazendo um percurso de estudos e preparação muito promissor. Ficou a seu cargo dirigir a orquestra na execução de uma peça difícil, “Estados”, da também nossa conterrânea Sara Ross, e pareceu-me que se saiu muito bem.
Mas a “pièce de resistence “ do concerto era a Nona Sinfonia de Beethoven, para a qual foi preparado um “Coro Participativo”, formado por cantores locais, que não desmereceu da hercúlea tarefa, a avaliar pelo entusiamo do público, que aplaudiu de pé, sem se cansar, no final do espectáculo. Os solistas participaram do mesmo aplauso, tal como o Maestro Pedro Carneiro e aliás toda a orquestra.
Já por mais de uma vez aqui me referi à Nona Sinfonia, e também a mencionei no meu discurso de posse como Presidente da Assembleia da República, qualificando-a então como a mais longa e mais bela de todas as obras sinfónicas do grande compositor alemão. Julgo que ainda voltarei a falar dela porque no próximo ano vai certamente haver festejos pelos 200 anos da primeira apresentação da mesma, em Viena de Áustria, em 7 de Maio de 1824. Está neste caso feita a prova do tempo, que assegura a perenidade das obras verdadeiramente clássicas! Muitas vezes me tenho interrogado se muitas das obras musicais recentes irão alcançar tal estatuto e acabo em estado de dúvida, por não conseguir reter de tais peças a menor recordação. Na estreia mundial de uma destas criações, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, encomendada pela própria Fundação, augurei mesmo que seria aquela a primeira e última vez que seria executada, tão chocante se afigurou ao meu gosto… Mas nisso de gostos não se deve discutir e terá havido talvez, até no caso concreto, quem tenha ficado deslumbrado! Pelo menos, não faltaram aplausos à compositora, quando subiu ao palco para receber o seu ramo de flores.
No concerto do Coliseu apreciei a coragem da JOP em “atirar-se “ a uma composição tão famosa e que tem sido gravada por todas as grandes orquestras do Mundo. Daí ser inevitável ter de confrontar-se com tais prestações, geralmente bem conhecidas dos melómanos. Foi em todo o caso um esforço meritório e que merece ser assinalado!
Do lugar em que estava, sentado na plateia, pude observar o empenho posto por muitos dos membros da JOP na leitura e execução das partes que lhes competiam, sem desviarem por muito tempo os olhos das indicações do Maestro, como deve ser. Via bem os naipes dos violinos e das violas, uma parte dos violoncelos e pouco mais. Lá atrás ficava o encarregado dos tímpanos, por sinal dois, substituindo-se um ao outro, e fazendo vibrar tais instrumentos, essenciais na orquestração beethoveniana, com verdadeiro gozo e boa disposição. A acreditar no Programa do Concerto há também uma percussionista na JOP, caso bastante raro, mas não a vi tocar desta vez. (Fiz alguma vez referência a haver instrumentos só tocados por mulheres, como as harpas; mas logo a seguir vi na televisão, no Canal Mezzo, uma orquestra com um harpista homem… Também estava convencido que só homens seriam percussionistas, mas pelos vistos também aí me enganei.)
Ficou-me a impressão que o Maestro Fernando Carneiro eliminou a parte inicial do quarto andamento da Nona Sinfonia, onde como que se passam em revista e se rejeitam os temas dos anteriores andamentos, iniciando logo com os prolegómenos do Hino à Alegria, depois desenvolvido e enriquecido com as vozes dos solistas e do coro. Esta parte da peça é deveras esmagadora e não há quem não a retenha no ouvido; aliás, é agora o Hino da Europa e ouve-se de pé, respeitosamente, no começo de qualquer cerimónia do âmbito da União Europeia.
O conjunto da orquestra , solistas e coro esmerou-se na execução da passagem da Ode à Alegria em que se evoca como fundamento último dela e da Fraternidade Universal pela mesma promovida, a existência de um Pai Divino, Criador, que habita para além do manto das estrelas. Numa tarde do Domingo de Páscoa não havia certamente evocação mais apropriada!
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)