Por mais um ano, estamos nas Festas
Estava mesmo começando a escrever este texto, quando fui interrompido pelo estralejar dos foguetes lançados no Campo de São Francisco, para assinalar que começou a semana das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres do ano em curso; levantei-me da mesa de trabalho e abri a varanda, para melhor os ouvir e encher-me de regozijo. Não me chegaram aos ouvidos os repiques dos sinos, mas é natural que também tenham soado, ampliando o sinal de que as Festas estão já à porta.
Todos os anos é assim, fora o que se passou nos tempos da pandemia, que tantas más recordações nos deixou. A partir do princípio da semana é como se já estivéssemos em festa, começa o atropelo de gente nos arredores do Santuário, compram-se círios para levar na procissão, os trabalhadores aceleram os derradeiros arranjos, para que tudo fique a postos para a iluminação e os arraiais.
Para todos os micaelenses, e cada vez mais para todos os Açorianos, estes dias são especiais. Aguardamos com ansiedade a chegada deles, contando cautelosamente as semanas depois da Páscoa, até encontrarmos aquela que foi fixada há séculos pela Madre Teresa da Anunciada como a apropriada para fazer sair a Veneranda Imagem do Senhor Santo Cristo da sua capela no Côro Baixo do Convento, para o seu passeio pelas ruas da nossa velha cidade de Ponta Delgada.
Desde a primeira procissão, ocorrida há mais de 300 anos, sempre se reuniu muita gente para levar o andor em triunfo. Hoje continua a ser assim e o povo não falta, vindo mesmo de muito longe, inclusivamente das nossas Comunidades de Emigrantes dos Estados Unidos da América e do Canadá, para enriquecer a moldura humana que o envolve.
A Revolução do 25 de Abril acabou com os trajes de gala, que era de tradição envergarem os portadores do andor, aliás restringidos a um número muito restrito de pessoas, pertencentes às antigas famílias, onde se iam sucedendo de pais para filhos, nos mesmos lugares. Mas daí veio a resultar uma tradição nova e bem saudável de permitir a qualquer um, desde que se apresente segundo as regras estabelecidas, partilhar tão honroso encargo, que é aliás também, pelo esforço que representa, uma boa forma de penitência.
Quando no próximo sábado soarem as quatro e meia da tarde, pontualmente, subirão no ar as habituais girândolas d e morteiros e o andor há-de surgir no portão do Convento, no meio de lágrimas e de palmas da multidão que se acotovela ao longo do percurso da Mudança, cujo entusiasmo abafa o som das bandas filarmónicas, que se empenham em tocar sem falhas cada um dos compassos do bem conhecido hino.
No Domingo do Senhor será a mesma coisa, saindo então o andor de dentro da igreja, onde fica exposto à veneração dos fiéis a seguir à Missa Campal, este ano presidida pelo novo Bispo da Diocese de Angra e Ilhas dos Açores, Dom Armando, cuja homilia está a ser aguardada com interesse. O cortejo prossegue pelo centro do nosso velho burgo, em busca das antigas casas religiosas que noutros tempos o iam pontuando: o Convento da Graça, o Convento de São João, hoje desaparecido e substituído pelo Teatro Micaelense, o convento de Santo André, que obriga a subir a ladeira que conduz à Arquinha e daí prossegue para o interior da Ilha, o Colégio da Companhia de Jesus, com a sua grande Igreja de Todos os Santos, de imponente fachada barroca, o Convento de Nossa Senhora da Conceição, hoje sede do Governo da Região Autónoma dos Açores. Ainda sou do tempo em que a procissão não passava pela Rua Marquês da Praia, mas subia pela Travessa da Conceição e vinha pela frente do Liceu, descendo pela frente da Igreja do Carmo até à desaparecida Rua 16 de Fevereiro e seguindo depois pelo Largo 2 de Março até à então ainda chamada Rua da Canada, hoje do Diário dos Açores.
Em criança, vinha com meu Pai bem depressa pela Avenida do Coliseu acima, uma vez concluído o giro da procissão, para ver, à distância, da varanda de casa, passar a última parte dela, onde iam as principais autoridades, todas com traje de gala. Ficou-me na memória o chapéu de plumas do Governador Militar dos Açores; mas também os oficiais da Marinha traziam chapéus de plumas, e isso reforçava, nesse tempo, a solenidade da ocasião. Muitos anos mais tarde, sendo então Deputado à Assembleia Nacional, também levei casaca e chapéu alto à procissão e garanto que a partir da Matriz, mais ou menos, o dito chapéu levado no braço parecia pesar já mais de uma arroba…
Tudo se faz para honrar Nosso Senhor através dessa Imagem tão particular, simples nos traços, mas de olhar tão penetrante, que a todos nos comove e impele. Saímos de diante dela diferentes, melhores, outros!
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)