Meditando no Pico sobre o presente e o futuro dos Açores

Este ano, por motivo de doença, não pude comparecer nas comemorações do Dia dos Açores, celebradas nas Lages do Pico, com o mar em fundo dando ao lugar da sessão solene um enquadramento de rara beleza. Mas segui tudo através da transmissão pela RTP/Açores, que me fez sentir como estando mesmo lá.

Notei que alguns partidos não compareceram, mas a falta deles não foi sentida. Quanto aos que compareceram, apreciei os discursos dos respectivos representantes, todos eles oportunos e vigorosos, cada um deles defendendo, naturalmente, os seus pontos de vista.

No notável e bem urdido discurso com que encerrou a sessão, o Presidente da Assembleia Legislativa, Luís Garcia, referiu-se às propostas concretas já aprovadas pela Comissão Parlamentar competente relativas ao avanço da Autonomia, muito bem entendida como um processo dinâmico, susceptível de alcançar novas metas. Delas destacou a iniciativa legislativa dos cidadãos, já consagrada até no plano europeu, como uma evidência de partilha do poder político até agora restringido às entidades partidárias. A fase seguinte, digo eu, será a tão reclamada apresentação de candidaturas a Deputados à Assembleia Legislativa Regional por grupos de cidadãos, quebrando o monopólio dos partidos políticos sobre tão delicada matéria. Em todo o caso, merece ser destacado que alguns projectos legislativos estejam finalmente a sair cá para fora, contrariando o paradigma anterior, que foi de deixar passar o tempo sem qualquer consequência prática. Isso independentemente do resultado das votações sobre cada um de tais projectos na Assembleia da República, onde os partidos com assento no Parlamento Regional estão desafiados a exercer a sua magistratura de influência, sobretudo os dois maiores, PS e PSD.

Ao Presidente do Governo Regional, José Manuel Bolieiro, coube a tarefa de expor à meditação de todos, presentes e ausentes, o seu conceito de Autonomia de Responsabilização, elaborando sobre o seu conteúdo e as suas aplicações práticas. Foi um exercício muito salutar!

O ponto de partida de tal orientação política é o reconhecimento de que a Região Autónoma não abrange todas as funções do Estado, remanescendo um importante leque delas na responsabilidade do Governo da República. Daí a natural exigência de que este não se esqueça das Ilhas dos Açores e dos seus cidadãos, que são afinal tão portugueses como os demais, o que, como foi articulado em diversos casos, não está acontecendo.

A atitude acintosa do Governo da República não é de estranhar e até foi em devido tempo prevista. Há uma preocupação de fundo, parece, de demonstrar que só o PS é digno e capaz de governar Portugal e os seus domínios! Daí está nascendo uma justa atitude de indignação, tarefa que cabe por excelência à nossa Assembleia Legislativa, que para isso inclui Deputados eleitos nas nove ilhas do Arquipélago, com poder de representação de todo o Povo Açoriano.

Para José Manuel Bolieiro, o princípio da continuidade territorial não pode ser invocado apenas quando se trata de acorrentar os Açores às decisões dos Órgãos de Soberania da República, mas deve ter aplicação prática quando se trata de definir benefícios para todos os cidadãos portugueses, dos quais não podem ser excluídos os Açorianos. E isto não está acontecendo em muitos casos, elencados pelo Presidente do Governo em argumentação bastante.

Ora, parece que Lisboa reaprendeu o velho princípio segundo o qual, uma vez que nos Açores se optou livremente pela Autonomia, o Poder Central se considera desobrigado de intervir em favor dos Açorianos, nas matérias já regionalizadas, para além da aplicação do disposto na Lei das Finanças Regionais, o que tem uma certa lógica. Mas afinal é esta Lei que se encontra desadequada, deixando as Regiões Autónomas na penúria, e a primeira prioridade deveria ser a sua revisão, aproveitando a conjuntura favorável, que é de estar o Estado cheio de dinheiro e sem saber o que fazer dele, distribuindo-o em ajudas aos diversos sectores da sociedade, assim tornados cada vez mais dependentes das benesses do mesmo Poder.

A doutrina exposta por José Manuel Bolieiro parece assumir como um dado o rasto deixado pela longa governação socialista, que é de entender a Autonomia como uma garantia de suplementação dos benefícios nacionais e uma defesa dos cidadãos contra os apertos eventualmente pela mesma via impostos. Recorde-se a generalização do subsídio de insularidade aos funcionários públicos regionais e a compensação dos cortes nos vencimentos dos mesmos nos tempos da Troika; ou a aceitação da contagem do tempo de serviço dos professores, ainda hoje objecto de forte controvérsia no plano nacional.

Haveria porventura um outro caminho, que passaria pela assumpção pelo Poder Regional de todas as funções e responsabilidades do Estado, exceptuadas as judiciais e de defesa, mas incluindo todas os múltiplos serviços, designadamente os policiais, que se têm estendido nas nossas Ilhas nos últimos tempos, todos dependentes e respondendo a Lisboa, exigindo a imediata transferência do envelope financeiro correspondente a tais funções e serviços? Seria isso talvez mais próximo da construção inicial da Autonomia Política e Administrativa dos Açores, garantida na Constituição, com as suas responsabilidades e custos correspondentes; mas de imediato não parece ser esse o caminho adoptado e serão decerto muitas as razões para tal opção, com destaque para a mentalidade prevalecente entre os cidadãos, avessa a novos desafios e sacrifícios pelo bem comum.

Se o finca pé é feito na responsabilização do Estado, enquanto Poder Central, então há que estar preparado para a continuação e até reforço das permanentes visitas á Região de dignitários nacionais, com foros de afirmação de soberania; e quiçá da ressurreição de um Ministro da República, com amplos poderes de coordenação das funções do Estado na Região, como aliás já tem sido aventado por alguns, aos quais objectivamente se juntam os que formulam lancinantes apelos ao Representante da República para que intervenha em matérias alheias às suas competências constitucionais.

João Bosco Mota Amaral

(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)