Revisitação das revisões constitucionais

Conforme tive já ocasião de lembrar, a revisão da Constituição exige a votação de uma maioria qualificada de dois terços dos Deputados à Assembleia da República, postulando por isso um acordo entre os dois maiores partidos nela representados, que têm sido, desde o início da Democracia, o PS e o PSD. A Constituição da República Portuguesa, aprovada pela Assembleia Constituinte em 2 de Abril de 1976, tem sido revista várias vezes ao longo da sua vigência de quase meio século, o que a situa como a mais duradoura das constituições portuguesas elaboradas por uma assembleia especialmente eleita para o efeito, assim se verificando em 1820 e depois em 1911, com o advento do regime republicano. Algumas das revisões constitucionais foram de mero pormenor, reclamadas pela integração de Portugal nas Comunidades Europeias, hoje União Europeia. A última delas limitou-se a modificar um artigo a fim de permitir a realização de um referendo popular sobre o Tratado Constitucional, então em fase de elaboração. Nunca chegou a haver tal referendo, nem tampouco o Tratado em questão chegou a entrar em vigor, por ter sido expressamente rejeitado na França e nos Países Baixos. Realmente importantes foram as revisões constitucionais de 1982, 1989, 1997 e 2004, esta última incidindo especialmente sobre questões relativas à Autonomia dos Arquipélagos dos Açores e da Madeira. A primeira acabou com o período de transição imposto pela MFA no auge do processo revolucionário e traduziu-se no regresso dos militares aos quartéis, extinguindo-se o Conselho da Revolução; no Conselho de Estado, criado como órgão de consulta do Presidente da República, ficaram com lugar cativo os Presidentes dos Governos das Regiões Autónomas e foram feitos alguns acertos em matéria de competência legislativa das Assembleias Regionais. Nessa altura as reivindicações sobre Autonomia foram lideradas pelas Maiorias do PSD existentes em ambas as Regiões Autónomas; em Lisboa, a Maioria parlamentar era da Aliança Democrática, resultante de um acordo pré-eleitoral celebrado entre o PSD, o CDS, o PPM e Os Reformadores, estes últimos incluindo diversas personalidades anteriormente ligadas a partidos ditos de esquerda, com destaque para António Barreto e para o nosso conterrâneo José Manuel Medeiros Ferreira, os quais aliás foram ambos Deputados nessa Legislatura. O PS estava em minoria, tanto cá como lá e também na Madeira. A revisão constitucional de 1989 foi acertada entre Cavaco Silva, Primeiro Ministro e líder do PSD, com maioria absoluta no Parlamento, e Vítor Constâncio, ao tempo Secretário Geral do PS. Ficou por ela aberto o caminho à reversão das nacionalizações, que abrangiam boa parte da economia nacional. Também foram incluídas na lei de revisão algumas novas competências para os Órgãos de Governo próprio democrático das duas Regiões Autónomas, nomeadamente em matéria de diálogo e cooperação com outras entidades regionais e com as entidades europeias. Nesses domínios já estávamos à frente com diversas iniciativas, que propiciaram o aparecimento das ilhas no âmbito das políticas europeias. Escusado será lembrar quais eram as posições relativas dos dois maiores partidos políticos, nos âmbitos nacional e regional. Quando se tratou da revisão constitucional de 1997, as circunstâncias tinham-se alterado e o PS estava em maioria relativa na Assembleia da República e na Assembleia Regional dos Açores; na Madeira mantinha-se a maioria absoluta do PSD. Foram introduzidos, por reivindicação expressa do líder do PSD, que era então Marcelo Rebelo de Sousa, os referendos e ficou aberta a possibilidade de o número de Deputados à Assembleia da República ser reduzido de 230 para 180, bem como de serem introduzidos círculos eleitorais uninominais. Destaco apenas estes aspectos, mas outros houve sobre o funcionamento do nosso sistema político também abordados pela lei de revisão. Quanto às Autonomias Insulares, ficou estabelecido que as relações financeiras entre as Regiões Autónomas e a República seriam reguladas pela Lei de Finanças Regionais e ainda, além de outras questões, que as leis gerais da República seriam as que como tal expressamente se qualificassem, ficando então limitado o poder legislativo regional, centro de milhentas controvérsias e verdeiro pomo de discórdia desse poder fundamental para a Autonomia Política das nossas Ilhas e da Madeira. A revisão constitucional de 2004 ocorreu quando em Lisboa existia uma maioria parlamentar resultante de um acordo pós eleitoral celebrado entre o PSD e o CDS/PP e nos Açores uma maioria absoluta do PS; na Madeira mantinha-se a situação anterior. Vítor Cruz era então o líder do PSD/Açores e Deputado à Assembleia da República, para a qual tinha sido eleito encabeçando a lista de candidatos açorianos. Cabe-lhe boa parte do mérito das complexas negociações realizadas para se conseguir um amplíssimo consenso sobre as matérias autonómicas, que corresponderam à “libertação” do poder legislativo regional; caíram também as limitações anti-autonómicas ainda existentes, introduzidas no texto constitucional em 1976 por iniciativa do PCP, secundadas pelo PS. Quase me esquecia de referir que os poderes do Ministro da República foram reduzidos em 1997, quando se lhes cortou a presença no Conselho de Ministros e deixaram de ter faculdades administrativas de superintendência; falou-se então em fazer delegações expressas de poderes por parte do Governo nas ditas entidades, mas nunca se passou disso, por de resto obviamente tal não agradar aos Governos Regionais. Em 2004, tal figura foi mesmo extinta, criando-se de novo o Representante de República, com meros poderes vicários do Presidente da República, de quem aliás depende e não do Governo. Desde o início o processo constitucional da Autonomia Política resultou de um entendimento entre o PS e o PSD, sem cujos votos nada se podia inscrever na Constituição. O PSD andou mais à frente, pressionado pelas suas organizações autónomas dos Açores e da Madeira. Mas, como já afirmei mais de uma vez, o triunfo da Autonomia é ter-se tornado consensual, abrangendo agora todos os partidos parlamentares - facto que só pode ser motivo de justo regozijo! João Bosco Mota Amaral