Mário Soares no seu centenário

De bem poucas pessoas se celebra o centenário, a maior parte das vezes porque quando chega tal data já quase ninguém se lembra do que fizeram ou sequer de que existiram… Não é este o caso de Mário Soares, que nos deixou há ainda bem pouco tempo e ainda por cima o seu legado é reconhecido por toda a gente, simpatizantes ou não da personagem, influenciando a vida de Portugal e dos portugueses, actualmente e por muitas gerações, assim o esperamos.

Nos dias mais recentes foram inúmeros os testemunhos aparecidos nos meios de comunicação social sobre Mário Soares, exaltando os seus feitos, que de resto bem o merecem. Falaram sobre ele pessoas que o conheceram directamente e com ele privaram e muitos outros que dele tinham apenas notícias. Todos se pronunciaram em termos positivos e até encomiásticos sobre o seu modo de ser e os seus combates políticos, das suas vitórias e também das suas derrotas, das últimas das quais sempre soube aliás sair por cima.

Até na Assembleia da República lhe foi dedicada a rara homenagem de uma sessão solene especial, privilégio de que não é bom abusar, mas se justificava plenamente no caso concreto: Mário Soares foi um distinto Membro do Parlamento e um dos que mais trabalhou para que no nosso País houvesse também, e funcionando com eficácia, uma democracia parlamentar.

Esgotados os elogios, resta-me, para não faltar à chamada, evocar algum episódio mais pessoal, revelador de uma faceta pouco conhecida da vida de Mário Soares. Narrarei alguma conversa com ele, de cujo conteúdo nunca me pediu segredo.

O primeiro episódio passou-se em pleno Conselho de Estado e foi presenciado por todos os presentes . Quando o novo órgão constitucional começou a funcionar, após a revisão de 1982, era Presidente da República o General Ramalho Eanes e Mário Soares tinha assento nele por eleição pela Assembleia da República, em representação do PS, do qual era ao tempo o Secretário Geral. O General Eanes tinha o costume de dar a palavra a cada um dos Conselheiros mencionando o seu nome completo e assim é que soube que Mário Soares se chamava Mário Alberto Lopes Nobre Soares. Pela mesma via soube do nome completo de Álvaro Cunhal, que era Álvaro Barreirinhas Cunhal.

Numa das primeiras reuniões, ao distribuir cafés por quem à roda da mesa o desejasse, o desajeitado colaborador do pessoal do Palácio deixou tombar a bandeja e vazou um copo de água sobre Mário Soares. Num intervalo da reunião, dirigindo-me a ele, em tom de brincadeira, disse: “Se o Senhor Dr. Mário Soares não estava ainda baptizado, hoje recebeu aqui o seu banho lustral!” Ao que ele respondeu, bem humorado, que tinha sido em criança baptizado e que até tivera por Madrinha Nossa Senhora da Conceição.

Alguns anos mais tarde, quando teve lugar a inolvidável Presidência Aberta nos Açores, ao apresentar ao Presidente da República o seu gabinete temporário no Palácio de Sant’Ana, chamei-lhe a atenção para a bela imagem de Nossa Senhora da Conceição lá existente - uma talha primorosa do século XVII, adquirida especialmente para o efeito e que está hoje no Palácio da Conceição - lembrando-lhe a sua conversa sobre a sua Madrinha de Baptismo, que por sinal é também a Padroeira de Portugal.

Não recordo que tenha feito então qualquer comentário, talvez apreciando no entanto o gesto. O certo é que noutra ocasião me disse que o seu Pai, que tinha sido antes ordenado sacerdote, obtendo depois a dispensa das suas obrigações nos termos canónicos em vigor, o procurava todas as noites, sendo criança, para fazerem juntos as orações costumeiras, até que, tendo já 13 anos, lhe pediu para acabarem com tal praxe, o que o Dr. João Soares respeitou sem qualquer objecção.

Julgo que se identificava como agnóstico, respeitando porém todas as crenças. Sobre a conversão da sua Mulher, Dr.ª Maria de Jesus Barroso, motivada, segundo ela própria me contou, pela recuperação do seu filho após o terrível acidente de avião, que, pela ordem natural das coisas, lhe poderia ter custado a vida, só dizia que tinha casado com uma Pasionária, que afinal passara a Madre Teresa de Calcutá. Ouvi-lhe este comentário, feito no meio de sorrisos de parte a parte e até de gargalhadas, jantando com ambos, de janelas abertas à brisa do fim de uma tarde de Verão, na sua casa fronteira ao Campo Grande, que hoje se chama Jardim Mário Soares.

João Bosco Mota Amaral

(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)