Gronelândia para os Gronelandeses
Surpreendeu-me bastante - alguns ignorantes diriam que fiquei surpreso… - com o à vontade com que certos líderes europeus logo se declararam prontos para se colocarem ao lado do Governo da Dinamarca e até para enviar soldados para a Gronelândia para a defenderem de qualquer invasão americana, no seguimento das tresloucadas afirmações do Presidente dos Estados Unidos.
Por seu turno, o Governo dinamarquês anunciou que vai investir um montante apreciável de dinheiro para comprar navios e outros armamentos, a fim de reforçar o aparelho logístico das suas forças armadas destacadas naquela grande ilha do Ártico.
Todos se exprimem como se as afirmações do Presidente americano fossem para tomar a sério, o que é muito discutível, e como se a Gronelândia seja de facto território da Dinamarca e portanto coberto pelas garantias e obrigações decorrentes dos tratados que criaram a NATO ou a própria União Europeia.
Ora, a Gronelândia já tinha habitantes quando os vikings lá se estabeleceram. Chegados a pé, pelas imensas planícies geladas do Canadá, ou em primitivas embarcações capazes de navegar nos mares tempestuosos do Atlântico Norte, perseguindo os alvos da sua caça e pesca, os esquimós, hoje reconhecidos sob a designação de “Inuítes”, alçaram os seus “iglos” familiares nas escassas zonas habitáveis das costas gronelandesas. Foi aí que os encontraram os grandes navegadores nórdicos, que pela força os submeteram.
(Entre parênteses, pergunto se alguém sabe o que sucedeu à Princesa Portuguesa, filha de um dos nossos primeiros reis, talvez até de Dom Sancho I, que foi dada em casamento ao Rei da Dinamarca da altura, selando assim uma aliança que se projectaria no tempo e chegaria até aos nossos dias, muitos séculos depois…)
Após a II Guerra Mundial, foi reconhecido ao território gronelandês e às suas populações uma certa autonomia, assumida de forma progressiva, até se consolidar como um verdadeiro governo próprio, capaz de rejeitar, por causa de interesses conflituantes em matéria de pesca, a sua integração nas Comunidades Europeias, hoje União Europeia, afastando-se assim da opção tomada pela Dinamarca.
Esta, por seu turno, visando assegurar o acesso ao Ártico, procura garantir a posse da Gronelândia, tal como das Ilhas Faroe, as quais estarão talvez em condições diferentes, mas conviria não esquecer que se trata de uma situação de tipo colonial e que ainda não há muito tempo foi mesmo acompanhada de práticas, hoje tidas por vergonhosas, sobre a população inuíte, que é afinal a primitiva população gronelandesa.
Acresce que os gronelandeses são em 85% favoráveis à independência do território, ficando por saber se os 15% restantes não serão afinal dinamarqueses deslocados e colocados em postos chave pelo Governo central, como é de uso em circunstâncias semelhantes… Aliás, em breve se vai fazer prova sobre o futuro da Gronelândia, pois há ainda este ano, parece, eleições regionais e o Governo Regional também preconiza a solução independentista.
Até agora a problemática do estatuto constitucional da Gronelândia tinha sido abordada com cautela pelas várias partes envolvidas. A opinião dominante era favorável à independência, desde que tal não afectasse o nível de vida da população, a qual beneficia de importantes transferências do Orçamento do Governo da Dinamarca para o Governo Regional gronelandês. Por seu turno, embora manifestando abertura para uma futura independência da Gronelândia, que assim seguiria o caminho trilhado pela Islândia, que também foi outrora território dinamarquês, o certo é que Copenhaga não parece muito disposta a manter as transferências orçamentais acima referidas por tempo indeterminado, nem tal se justificaria.
No presente surgiu a ambição de expansão territorial de alguns cabecilhas americanos, invocando razões estratégicas e interesses económicos, nomeadamente, quanto a estes, as reservas de petróleo, gaz e terras raras existentes no subsolo gronelandês, e tornadas acessíveis pelo degelo em curso.
A Gronelândia independente e entregue a si própria, com os seus cerca de 60 mil habitantes, tem de pensar bem como suplantar as pressões de vário tipo que sobre ela poderão vir a ser exercidas, por quem quer que se pretenda apropriar de algum dos seus valores. Pode sempre dizer-se que é natural que se mantenham laços militares com a Dinamarca, mas no dia em que a Gronelândia se tornar um país independente logo desaparecem as garantias existentes sobre o território nacional dinamarquês.
Talvez não seja de todo desajustado lembrar o que se passou no longínquo arquipélago do Havai, que era um reino independente até as respectivas instituições serem subvertidas por alguns investidores americanos, passando a um protectorado dos Estados Unidos e já no começo da década de cinquenta do século passado a 50º Estado da União!
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)