Nos 50 anos do 6 de Junho
Pelos vistos é sempre assim: ao fim de 50 anos o calendário repete-se e, no caso que agora interessa, o dia 6 de Junho vem a cair novamente numa sexta-feira, como aconteceu há meio século. Foi um dia de calor intenso, testemunhado nas camisas abertas que envergavam muitos manifestantes, ao contrário do que aconteceu meses mais tarde, numa outra grande manifestação popular, por mim e por Américo Viveiros convocada pela televisão, após o cerco da Assembleia Constituinte onde éramos ambos Deputados, que agora aqui menciono porque tenho visto fotografias dela publicadas como se fossem do 6 de Junho, quando as pessoas já se apresentam com casacos e até com gabardines ou sobretudos por já ser Outono e o tempo frio.
À frente da manifestação de 6 de Junho ia o Vítor Almeida, mais tarde eleito, em lista do PSD/Açores, Presidente da Junta de Freguesia dos Fenais da Luz, montando um burro. Seguia-o uma enorme multidão, de gente de todas as idades e classes sociais, reunida para protestar perante o representante do Poder, que era o Governador do Distrito, contra o estado de coisas então existente, reclamando medidas urgentes para a solução dos problemas sentidos na nossa Ilhas de São Miguel, aliás também por todo o Arquipélago dos Açores. No percurso pela cidade a manifestação foi engrossando e chegou ao Palácio da Conceição deveras enorme!
Foi aí que se iniciaram os acontecimentos mais dramáticos desse dia. A chegada do General Comandante das Forças Armadas, a demissão do Governador comunicada pelo próprio à multidão que o reclamava, a entrada de alguns manifestantes no gabinete do governador para negociarem com o General Altino de Magalhães, o lançamento de palavras de ordem pela independência dos Açores. Nesse dia estacionava no nosso porto uma esquadra da OTAN.
Quando os manifestantes dispersaram, alguns dirigiram-se ao Emissor Regional dos Açores, prontamente ocupado e passando a transmitir apenas música açoriana, entre os comunicados lidos com entusiasmo pelo jornalista de serviço, que era Jorge do Nascimento Cabral, nem mais menos, mais tarde Deputado à Assembleia Regional eleito pelo PSD/Açores e Director do jornal Correio dos Açores, sem nunca renegar as suas convicções de nacionalismo açoriano, nem tal lhe foi sequer alguma vez exigido. Outros manifestantes ocuparam o Aeroporto, colocando camiões carregados com toros de madeira na pista, tornando-a assim inoperacional.
Não estava nesse dia nos Açores, mas sim em Lisboa, onde a 2 de Junho se haviam iniciado os trabalhos da Assembleia Constituinte, por sinal precisamente com a contestação da minha presença e dos meus poderes por parte do Deputado da UDP. A defesa da minha posição, conforme previamente combinado, foi feita pelo Presidente do Grupo Parlamentar, Carlos Mota Pinto, e o incidente, apreciado pela Comissão competente e depois ratificado pelo Plenário, foi encerrado favoravelmente.
No dia 6 de Junho tentei informar-me sobre o que por cá se estava passando e que a rádio descrevia em termos apocalípticos. Mas as comunicações eram então muito difíceis e só consegui obter ligação à sede do PSD/Açores quando já decorriam as negociações entre o General Altino de Magalhães e os supostos representantes dos
manifestantes e organizadores da manifestação. Como quer que seja, a maior parte deles e alguns mais foram depois presos por ordem do mesmo general, altas horas da noite, e enviados para o Estabelecimento Prisional de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira.
Soube que entre os manifestantes se encontravam muitos militantes do PSD/Açores e do envolvimento do partido na organização da manifestação, conforme está narrado por Américo Viveiros no seu livro sobre o 6 de Junho. Soube também do comunicado emitido pelo partido nesse mesmo dia, em que foram distribuídos víveres entre os ocupantes do Emissor e do Aeroporto, apelando à “defesa dos interesses destas gentes”, naturalmente o Povo Açoriano. Soube ainda da contra-manifestação “Um, dois, três/Fascistas para o xadrês “, com participação muito reduzida.
Quando finalmente cheguei a São Miguel, tratei de preparar um comunicado extenso com a posição do PSD/Açores, reflectindo sobre os acontecimentos ocorridos no dia 6 de Junho e seguintes, criticando sobretudo as prisões sem culpa formada, que estavam aliás já a terminar.
Sempre considerei o 6 de Junho como um acontecimento deveras histórico e tive o cuidado de incluir nas listas do PSD/Açores, para a Assembleia Regional e logo na I Legislatura, bem como nas das autarquias locais, alguns dos presos por tal causa. O nosso primeiro Deputado em tal enquadramento foi o meu antigo colega do Liceu, José Nuno de Almeida e Sousa. Mas também António Clemente Costa Santos e João Gago da Câmara estiveram presos após o 6 de Junho e vieram a ter no meu tempo funções electivas de alta responsabilidade. O primeiro deles até veio a ser Membro do Governo Regional, sob a minha presidência. José Manuel Bolieiro, quando Presidente da Câmara Municipal, mandou colocar uma placa comemorativa, com os nomes de todos os presos do 6 de Junho, numa parede fronteira da sede antiga da nossa Autonomia.
Fui eu próprio quem convenceu o então Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada a dar o nome de 6 de Junho á rua, vizinha do Palácio da Conceição, por onde passou a manifestação, em vez de o atribuir à antiga Rua Formosa, depois Rua Lisboa, onde aliás se situa a casa onde nasci e na altura morava. Vejo com muito gosto um dos militantes social-democrata da primeira hora, Afonso Quental, Presidente da Juta de Freguesia da Maia, ganhando-a ao PS em 1979, entre os fundadores de um organismo que se propõe, parece-me, manter viva a memória do 6 de Junho.
Julgo que o 6 de Junho acelerou a evolução que ocorreu nos Açores após o 25 de Abril, e que se concretizou na criação da nossa Região Autónoma, com órgãos de governo próprio, que é o fruto maduro da Revolução de Abril. Passámos da reivindicação de uma autonomia distrital democrática para uma visão regional, aliás já esboçada no primeiro projecto apresentado pelo PSD/Açores logo os finais de 1974.
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)