Os derradeiros “abencerragens” do Centralismo
O Tribunal Constitucional acaba de pronunciar-se sobre diplomas regionais, declarando, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de algumas das suas normas, relacionadas com os poderes sobre questões marítimas, que se pretende caberem aos Órgãos de Governo Próprio da Região Autónoma dos Açores, mas os juízes não concordam e querem atribuí-los ao Poder Central.
Tem sido quase sempre assim: o Tribunal Constitucional tende a vetar ao avanços da Autonomia Político-Administrativa estabelecida na Constituição, mesmo quando foram objecto de prévia negociação entre os responsáveis políticos dos escalões regional e nacional, descobrindo algum preceito que acaba por o impedir, que mais não seja o qualificativo do Estado como Unitário. Ora, a Autonomia tem um dinamismo natural e é por sua natureza progressiva, o que pelos vistos não conseguem compreender os juízes do Tribunal Constitucional.
É certo que o Tribunal Constitucional não actua senão perante a iniciativa de certas entidades, legalmente definidas. Desta vez a entidade queixosa foi o Primeiro Ministro, por sinal no último dia do seu mandato, pressionado por alguns líderes de opinião socialistas, cujos nomes têm de ficar registados como adversários da progressividade da Autonomia dos Açores. Mas afinal, ensina a experiência, também podem fazer mexer o Tribunal Constitucional outras entidades, directamente ou recorrendo a quem partilha tal poder, como aconteceu com a versão em vigor do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, que tem vários preceitos declarados como inconstitucionais por iniciativa do então Provedor de Justiça.
O Tribunal Constitucional foi criado por alturas da primeira revisão da Constituição, quando foi extinto o Conselho da Revolução e também a Comissão para os Assuntos das Regiões Autónomas, de composição paritária, isto é, incluindo representantes por estas mesmas designados. Não foi possível então conseguir que o mesmo princípio se mantivesse quanto ao novo Tribunal, pois toda a energia foi gasta em assegurar a presença dos Presidentes dos Governos Regionais no Conselho de Estado e depois nos mais altos órgãos do Estado, Conselho Superior de Defesa Nacional, Conselho Superior de Informações, Conselho Superior de Segurança Interna.
E no entanto teria feito sentido, que em vez dos juízes escolhidos por cooptação pelos eleitos por maioria qualificada na Assembleia da República, do que tem resultado algumas situações de impasse, com prolongamento de mandatos em termos legalmente discutíveis, passasse a haver no Tribunal Constitucional juízes indicados pelas Assembleias Legislativas Regionais e ainda pelo Presidente da República. É matéria que não deveria ser ignorada na próxima revisão da Constituição.
Sempre tive relações complicadas com o Tribunal Constitucional, por causa do vezo centralista das suas decisões. Nos primeiros anos da nossa experiência de governo próprio democrático, raras foram as questões de constitucionalidade suscitadas a respeito da legislação regional. Mas a partir de certa altura o então Ministro da República, com o propósito de travar a nossa
dinâmica autonómica, passou a enviar os diplomas regionais para prévia apreciação do dito Tribunal, com os resultados expectáveis… Apresentei-me perante o primeiro Presidente do Tribunal Constitucional, Armando Marques Guedes, que tinha sido meu professor da Faculdade de Direito de Lisboa precisamente da cadeira de Direito Constitucional, dizendo-lhe meio a sério meio a brincar, que se continuassem a declarar inconstitucionais os diplomas regionais teria de propor a extinção do próprio Tribunal - ao que ele replicou, no mesmo tom, que o Tribunal também poderia propor a extinção das Regiões Autónomas!
Ainda pensei, quando da solene comemoração do 10º aniversário do Tribunal Constitucional, interromper a sessão com um pedido de palavra ao Presidente da República, para alertar os presentes contra a jurisprudência restritiva da Autonomia Constitucional praticada pelo Tribunal, mas acabei por desistir da ideia.
Fui sempre, porém, contrariando as práticas correspondentes, uma das quais me deparei quando fui Presidente da Assembleia da República, e que era , nem mais nem menos, a de incluir em todas as leis a referência de serem “leis gerais da República”, mesmo quando o não eram e deviam deixar campo aberto às possíveis divergências regionais, a plasmar na competente legislação. Mandei logo retirar tal menção, que tinha pelos vistos sido introduzida para responder à limitação ao tempo existente do poder legislativo regional pelas ditas “leis gerais da República”. Essa limitação desapareceu com a revisão constitucional de 2004, a última com conteúdo substancial, que tive o gosto de subscrever por força do cargo então exercido.
Afinal, o problema é sempre o mesmo: o Mar e a sua extensão e os seus recursos, pelos vistos motivo de cobiças várias! Portugal identifica-se como um Estado arquipelágico, incluindo o território continental da República e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. A grande extensão do Oceano Atlântico é a que os Açores aportam ao conjunto. Mas tanto os Açores, como aliás também a Madeira, são Regiões Autónomas, o que deve ser sublinhado sempre perante as mentalidades centralistas, cujas tendências colonialistas, apesar de já terem passado 50 anos sobre a independência das colónias, pelos vistos ainda estão latentes.
Resta-nos denunciá-las e combatê-las sempre e sem nunca desistirmos da nossa afirmação açoriana dentro do conjunto nacional!
João Bosco Mota Amaral
(Por convicção pessoal, o Autor não respeita o assim chamado Acordo Ortográfico.)